terça-feira, 8 de maio de 2012

POROROC POROROC

Os antigos povos da Amazônia jamais poderiam imaginar que o fenômeno que tanto temiam se tornaria hoje um sonho para surfistas do mundo todo. No Brasil, as ondas de maré são conhecidas como pororoca devido ao tupi-guarani “pororoc pororoc”, que significa algo como “grande estrondo destruidor”. Apesar de a pororoca ter ficado internacionalmente famosa, poucos sabem que ela é causada pelo violento transbordamento da maré na foz de alguns rios, e que embora essa luta do mar contra as águas doces se repita diariamente, quase nunca ocorre com a intensidade suficiente para amedrontar índios e extasiar surfistas. Trata-se de um acontecimento misterioso desde as origens, pois enquanto no mar as ondas são geradas por ventos e fundos adequados, as ondas fluviais dependem da influência da lua sobre a Terra. Segundo a astronomia, a lua atrai parte das águas dos mares e as arrasta conforme se move ao redor da Terra. Quando a Terra se aproxima da órbita da lua, no equinócio, aumenta a atração gravitacional e acontecem as maiores marés do ano. E as maiores pororocas... No hemisfério sul, o equinócio de outono é a melhor época para se presenciar o fenômeno. Entre os meses de fevereiro a maio, em especial março e abril, o surfe tem hora e data marcada para acontecer. Somente nos dias de lua cheia ou nova, mais precisamente um dia antes, no próprio dia das luas e nos três seguintes que é garantido. Ondas intermináveis se formarão com força suficiente para inverter o fluxo natural do rio. Quanto ao horário, dois são os momentos diários, sempre no ápice da maré cheia - a preamar - que varia conforme o dia, mas se repete a cada 12 horas. Por todas essas complexas razões, logo que decidi surfar essa onda, criei uma relação inexplicável com a lua. Quase como se finalmente eu a tivesse descoberto. Semanas antes de embarcar para São Luís, ainda em distantes solos paulistanos, eu acompanhava hipnotizado o crescimento do astro noturno, e à medida que ele foi enchendo no céu, a descarga de adrenalina era tanta, que me fez questionar algumas vezes se estava mesmo fazendo a coisa certa. Sobre o surf em si, você pode ser um surfista experiente, pode já ter passado por inúmeras situações desafiadoras no mar, não interessa. Debutar na pororoca o fará se sentir um bebê arriscando os primeiros passos no esporte. Tudo é diferente. Alguns que nunca viveram a experiência tendem a desmerecê-la, sob a alegação de que pelas fotos a onda é sempre pequena. De fato, nas partes mais estreitas do rio ela gira em torno de meio metro. Porém, na foz do rio, na porta de entrada da onda, local apelidado pelos locais de "Paredão da Morte", a realidade costuma ser bem diferente. Como mostra o vídeo abaixo, fui engolido por uma espuma branca de quase um metro e meio, que entrou varrendo com muita velocidade o estuário do rio Mearim, localizado no estado do Maranhão, próximo à pacata cidade de Arari. Na lua cheia de abril, no mesmo lugar a onda entrou com 2 metros e passou de 30 km/h. Agora, qualquer que seja o tamanho da onda, outros riscos sempre estarão presentes. Animais carnívoros como jacarés e piranhas costumam ser os mais lembrados, mas para os surfistas acostumados à pororoca existe uma teoria de que os bichos pressentem a bagunça e procuram águas mais tranqüilas. Mesmo que resolvam ficar, a luta pela sobrevivência será bem diferente daquela relacionada à alimentação da carne humana. Por outro lado, o lendário candiru parece preocupar bem mais os freqüentadores de rios da Amazônia. Atraído pela urina da pessoa, o bicho entra no canal da vagina ou da uretra e passa a se alimentar do sangue do hospedeiro. Dizem que uma vez instalado no corpo humano, o peixe-vampiro causa uma dor terrível, só sendo possível retirá-lo mediante cirurgia. Outro risco, talvez esse o maior, consiste em ser lançado pela onda à margem do rio e ser arrastado na parte seca. O surfista pode se chocar contra árvores ou no mínimo passar bons minutos sentindo a lama entrar por todos os poros do corpo. Eu mesmo quase tive esse desprazer ao sair da onda retratada na foto acima, cuja espuma lambia a margem e arrastava troncos como se fossem palitos. Se consola a quem pensa em se aventurar, nesses 15 anos de surfe em rios brasileiros nunca houve nada além de sustos. E verdade seja dita: o preço que se paga para estar ali é até bem baixo perto dos benefícios que a experiência te proporciona. Não há palavras para a sensação de surfar ondas perfeitas num rio cercado pela floresta tropical. É também muito bacana o exercício de solidariedade que a pororoca impõe ao esporte. Como a única onda que mantém força por vários minutos é a primeira, todos devem surfá-la juntos. O oposto da regra individualista que vige no mar, onde só uma pessoa surfa cada onda, e algumas interferências acabam virando briga na areia. No rio todos podem e devem surfar a mesma onda. O clima em geral é amistoso, e então, quando a espuma perde a força e as pernas já estão bambas, todos comemoram berrando junto, num êxtase coletivo que só amplia o valor da experiência. Por essas e outras, depois que o fenômeno passa pela última vez, os pororoqueiros se reúnem em um botequim à beira do mesmo rio, e todo mundo só consegue pensar na cerveja gelada e no calendário. Neste último caso para confirmar o dia exato da próxima lua. video da viagem

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

ÀS AVESSAS

- A casa de praia é minha, foi construída com o dinheiro da minha família, dos meus pais.
- Ah é? Então eu fico com os dois carros.
- E eu? fico a pé? Você está ficando louco, cada vez mais louco... Na verdade, tudo devia ser meu. Foi você que me traiu.
- E você não, né? Você nunca me traiu, é uma santa, prestes a ser canonizada..
- Mas foi você quem começou. Se não tivesse começado, eu jamais teria. Minha traição foi um protesto, a tua não, foi pura safadeza...
- Como você é mestra em inverter as coisas. Impressionante! Você que me abandonou totalmente, achou que pudesse viver sem sexo. Mas está bem. Quer ficar com tudo? Com as casas, os dois carros, ok. Mas duma coisa não abro mão. O Tomé fica comigo.
- Ahhh... Pera lá. Deixa ver se ouvi direito. Era só o que faltava... Você não tem condição nem de cuidar de si próprio, quanto mais do nosso filho?
- Ué? Você não quer que eu abra mão de todo o patrimônio? Tá bom. Só que dele eu não abro mão.
- Não estou acreditando, não posso acreditar Osmar. Você é mau, você é uma pessoa má, um manipulador, que usa o próprio filho só pra me atingir.
- É simples, Nádia. Vamos ver o que o homem da capa preta vai decidir. Duvido que dará a guarda para uma pessoa completamente desequilibrada como você.
- Desequilibrada? Eu? Você que é um louco, egoísta, frustrado, emocionalmente dependente da mãe até hoje..
- E você? Você é uma paranóica, maníaca, obsessiva compulsiva, ainda por cima frígida.
No caminho ao Fórum tudo ainda estava calmo. Foram juntos, no mesmo carro, representados pelo mesmo advogado, que jamais poderia imaginar o quanto o seu trabalho de redigir a separação consensual estava prestes a naufragar. Pois bastou a espera de duas horas de espera pela audiência no corredor do Fórum, para os ânimos do casal voltarem a se acirram e os dois voltarem à estaca zero da lavação de roupa suja. Demoraram quase um ano para chegar à conclusão de que queriam mesmo o desquite. A ficha foi caindo à medida que brigavam feio, alguém ameaçava pedir o divórcio, e o outro dizia – Ah é? Então pede. A ideia só amadureceu de verdade quando Nádia se engraçou com o advogado que procurou para se informar sobre “esses negócios de separação”. Há tempos Osmar sabia já que ela deitava com outro, só nunca desconfiou que esse “outro” pudesse ser o doutor Ruy Aranha. Tanto que foi ele mesmo o escolhido dos dois para arquitetar o recém-frustrado acordo na Justiça. Antes de Ruy, Nádia até chegou até a trair Osmar algumas vezes, muito esporadicamente, mas à época não tinha ainda peito para levar a separação adiante, principalmente por causa do filho, que sofria demais com as discussões.
Osmar, de outra parte, começou a trair lá pelo quarto ou quinto ano, numa viagem a trabalho para Aruba com a qual foi contemplado por se tornar o vendedor do ano na firma. De lá pra cá, nunca mais parou. Ultimamente, porém, vinha chutando o pau da barraca. Dormia no motel, saía com várias ao mesmo tempo, e quando a situação beirou o insustentável, Nádia tomou coragem, arregaçou as mangas e descobriu os prestimosos serviços multi-uso do doutor Aranha.
Apesar das brigas e traições, o casal tinha o saudável hábito de viajar pelo menos uma vez por ano. Nas viagens, esqueciam todos os problemas, escapadas e discussões para desfrutarem momentos de raro deleite. Principalmente na última década, Osmar ficou muito bem de vida, cresceu nas empresas por onde passou, tendo em razão disso possibilitado grandes passeios à família. Foram aos Alpes suíços esquiar, embarcaram em cruzeiros pelo mediterrâneo, saíram às compras em Paris, Nova Iorque e Istambul, e até passeios de camelo pelos arredores do Cairo chegaram a fazer. Osmar adorava comprar joias para a esposa. Dava-as igualmente às amantes, mas o gosto de Nádia, esse ele conhecia como ninguém. Dava-lhe extremo prazer ver a cônjuge toda adornada de brincos, pulseiras e colares. Achava-a classuda, dona de uma elegância mais merecedora do mimo do que qualquer outra, por mais bela que fosse a outra. Agora, se houve uma fase de sintonia na vida do casal, foi sem dúvida nos primeiros anos de vida do filho único. Na verdade, desde a gravidez que o casal já viveu essa fase, dita a melhor. Osmar se transformou com a notícia. Comprava óleo de amêndoas para passar na barriga da mulher, participara ativamente da decoração do quarto, enfim, a paternidade o deixou muito sensível. Depois, quando o guri nasceu, os dois passaram por uma fase desgraçada, não tinham dinheiro nem para a pizza da sexta-feira, discussões homéricas eram travadas em torno dos cheques especiais, mas logo ficavam de bem, selando as pazes com festinhas particulares no primeiro sono da criança. Depois que o rebento estabeleceu-se criança, as brigas passaram a rondar sobre o melhor modo de educá-la. Eram também discussões demoradas, renhidas, ainda que depois sempre saíssem mais unidos e fortalecidos delas.
Osmar e Nádia se casaram em grande estilo, numa festa para mais de 400 pessoas. A cerimônia aconteceu na Nossa Senhora do Brasil, às custas do pai de Nádia, seguida de festa na Casa das Caldeiras, paga com muito sacrifício pelo noivo. Como manda o script, o baile teve distribuição de perucas, óculos piscantes, bolhas de sabão e o DJ conduziu a farra para além das cinco da manhã. A falecida bisavó de Nádia, então uma elegante senhorinha contando com quase noventa anos, só deixou a festa lá pelas três da manhã, tamanha a emoção de testemunhar a bisneta, toda linda e radiante na noite de seu enlace. Veio então a lua de mel em Trancoso, Bahia, não por acaso o mesmo lugar onde Osmar pleiteou Nádia em casamento. Foi na primeira oportunidade que o pai autorizou a filha a viajar sozinha com o namorado, que Osmar não pensou duas vezes. Gastou o ordenado de trainee num pacote para o sul da Bahia, reservou a melhor suíte da mais charmosa pousada da vila, preparou uma noite surpresa à luz de velas, forrou o chão com pétalas de rosas vermelhas, pôs bem baixinho a música “Eu preciso dizer que te amo” de Cazuza e Bebel Gilberto, e pediu a mão de Nádia em casamento, aos vinte e três anos de idade, movido pela mais livre e espontânea vontade. Foi assim, tudo muito rápido, casaram-se dois meses depois de noivarem, namoraram não mais que um ano desde o primeiro flerte no corredor do supermercado, quando Osmar viu Nádia pesquisando o preço dos sabãos em pó, e teve uma forte e imediata intuição de que ele se tornaria o homem de sua vida, e ela, a sua mulher...

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O AMBIENTALISTA DO CONDOMÍNIO

Caro senhor condômino do apartamento 47 bloco B,

Conforme estipulado na Assembléia Geral Ordinária do Edifício Piazza Del Monte, o senhor deve providenciar a imediata retirada das plantas do corredor. Se a medida não for atendida dentro do prazo de 5 dias, a Administradora do condomínio será obrigada a aplicar pena de multa, conforme previsão em Estatuto.
Atenciosamente,
Cabreúva Imóveis LTDA


- Bando de ejaculadores precoces! Como assim? Por que encasquetar tanto com um vaso de planta? Ah, mas não ficar assim não...
- Não?
- Não. Vai ter vingança!
- Vingança? – minha mulher.
Abri o word e comecei a digitar uma carta-resposta:


CARTA-RESPOSTA


Aos caros condôminos que na última Assembléia Ordinária deliberaram pela retirada do vaso de plantas do corredor,

Em atenção à notificação que recebi da Administradora Imobiliária, gostaria de prestar aos senhores alguns esclarecimentos sobre o assunto. Primeiro. Antes de mais nada, queria pedir desculpas pelos inegáveis incômodos que certamente nosso vaso de avencas vem causando na vida de todos vocês. Claro, no fundo, mesmo nós do 14b sabemos: plantas são seres anti-estéticos, nefastos, repulsivos e que só denigrem ainda mais essa nossa m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a e árida área social. Aliás, só colocamos as plantas ali porque somos pessoas profundamente infelizes, sexualmente frustadas como voc ..

- Tá louco? – minha mulher de novo, passando para ler a tela do computador.
- Vai adiantar alguma coisa lançar mais merda ao ventilador? Por que ao invés disso, você não faz uma enquete?
- Uma enquete?
- É. Veja quantos de fato são contra a permanência das plantas no corredor. Aposto que é uma minoria. De repente, e se a enquete confirmar isso, a gente até consegue mudar a decisão da Assembléia...


A ENQUETE


Caro condômino do Piazza Del Monte,

Por determinação da última Assembléia Geral Ordinária, ficou estipulado, que o vaso de plantas localizado no corredor social bem defronte à janela do apartamento 47B deve ser retirado no prazo de 5 dias, sob pena de multa. Ocorre que nós do apartamento 14ª colocamos o vaso justamente na frente da nossa janela porque fica numa área de circulação do condomínio, e as plantas são um meio de preservar a privacidade sem fechar as persianas, que obstruiriam significativamente a entrada de sol e ar em nosso apartamento.
Por estes motivos (para nós muito valiosos!), gostaríamos de confirmar se ainda assim o senhor(a) condômino(a) não está de acordo com a permanência das plantas no local.
Ressaltamos que, caso a maioria opte pela permanência, nós nos responsabilizamos integralmente pela manutenção das plantas, bem como pelo cumprimento de outras condições que os senhores tiverem a sugerir.


RESULTADO DA ENQUETE


24 votos em “concordo com a permanência”, sem imposição de condições, 5 votos em “concordo desde que cuidem das plantas”, e finalmente, 6 votos em “não concordo”, dos quais um deles, possivelmente de autoria do condômino que capitaneou a campanha anti-vaso na última Assembléia, trazia o seguinte recadinho indigesto:

“O morador deveria ter avaliado os prós e contras da localização do apartamento quando da compra, e não agora, transferindo aos demais moradores o ônus dos problemas que encontrou. Além disso, as plantas estão muito feias e mal tratadas.”

Está bem vai que a avenca japonesa, no meio do inverno seco de julho, não fica lá muito bonita. Mas daí a dizer que estivesse tão feia e mal tratada? De toda sorte, o resultado favorável na votação informal nos deixou bastante animados, e por essa razão decidi simplesmente não tirar o vaso. Confesso que menos por razões ecológicas, mais por picuinha mesmo de condomínio, resolvi sustentar a briga até o fim e assumir os riscos. Dali a dois dias, o síndico do prédio bate à porta da nossa unidade:
- Viu, tem um pessoal aí que tá ligando todo dia na Administradora para exigir a multa das plantas. Você não vai tirar o vaso não?
O síndico não era contra as plantas, mas, com toda as suas compreensíveis razões, ele era contra ter que aturar gente mal resolvida infernizando o seu ouvido por conta de um vaso no corredor social.
- Sabe como é, esse pessoal não tem mais o que fazer, então eles ficam cobrando a minha assinatura, já que sem ela a multa não sai.
- E o senhor assinou?
- Não, jamais faria isso antes de vir aqui falar contigo...
- Dá para segurar mais uma semana?
Uma semana nos foi dada. Nesse meio tempo, a minha missão não era lá das mais fáceis. Marcar uma Assembléia Extraordinária, conseguir o quórum mínimo de presença, ou seja, inventar algum assunto menos egoísta do que o vaso de plantas para reunir o povo, e então, finalmente confirmar oficialmente a maioria verde expressa na enquete informal. Por uma dessas coincidências da vida, no dia seguinte descobri que o destino começava a jogar a meu favor. Um casal preocupado com outras questões veio nos avisar sobre a realização de uma Assembléia Extraordinária para tratar de diversos assuntos. Pronto, pensei. Bem mais fácil do que eu imaginava. Agora era só ir lá e pedir para incluir na votação da permanência das plantas.



A ASSEMBLÉIA EXTRAORDINÁRIA


Sentei-me quinze minutos antes do horário marcado. À essa ocasião pré-reunião, claro, alguns condôminos já caíam no clichê de criticar as altas taxas do condomínio ou as cochiladas do porteiro da noite. Foi quando me dei conta de que embora difundida sob a alcunha de Assembléia Extraordinária, não era lá bem isso o que significava aquela tertúlia condominial. Tratava-se sim de um encontro informal, aliás do qual nem o síndico fazia parte. Bem mais complexo do que eu imaginava, o que estava em curso ali era um engenhoso golpe do casal organizador da reunião para depor o síndico atual, daí a razão para ele próprio não estar presente. Rapidamente percebi que o marido do casal estava obcecado com a ideia de ascender ao poder e tornar-se ele a principal autoridade condominial. Só o que eu jamais podia imaginar naquele momento, fui só descobrir depois de a reunião terminar, o mesmo cara obcecado pelo poder era também quem exigia a multa do vaso, e quem colocou o recadinho na enquete dizendo que a avenca estava feia e mal tratada...
Voltando à reunião, diante do clima de animosidades de seus participantes, entrei na balbúrdia para dizer que não adiantava ficarem discutindo um monte de coisas se aquele encontro não tinha valor oficial. O máximo que se podia fazer naquele momento era agendar uma pauta de assuntos para votação, e o mais importante, marcar uma data para a realização de uma Assembleia, desta vez com a presença da imobiliária, do síndico atual e de tudo o mais que fosse necessário para se tornar oficial. O obcecado aspirante a síndico, que era novo no prédio e não sabia que eu era o dono das plantas, foi o primeiro a aplaudir minha sugestão. Sorriu pra mim, talvez pensando assim – ah, esse aí vai votar em mim pra síndico! E eu, recebendo o sorriso do sujeito, pensei – ah, esse aí votará na permanência da minha plantinha!


A RENÚNCIA


No dia seguinte o síndico do condomínio ficou muito fulo da vida com a realização de uma reunião extra-oficial, sem a sua ciência e consentimento, então foi à imobiliária e renunciou ao cargo. – Chega dessa gente mal resolvida. Imagino que tenha pensado ao abdicar da sindicância. Sob a ótica dos meus interesses, o lado bom é que até o dia da Assembleia estava garantido: não sairia a multa pelo simples fato de que não haveria síndico para assiná-la. Em contapartida, o zelador veio me contar que além do síndico, também as minhas plantinhas o candidato único queria tirar. Exato, candidato único. Não surgiram outros condôminos interessados em concorrer à vaga, só ele, o golpista. Não por isso. A briga em torno das plantinhas tornou-se uma questão de honra tão forte, que ao saber desse desinteresse dos outros de concorrer à vaga, não hesitei. Candidatei-me ao cargo mais mico da vida urbana: síndico de prédio numa cidade como São Paulo, habitada por pessoas que passam o dia no trânsito, no trabalho, no trânsito de novo, e terminam na televisão, caso não haja algo reunião de condomínio ao fim do dia.


A CAMPANHA


Uma vez aceita a briga, obviamente não podia nem pensar em perdê-la. Como nunca tive qualquer experiência política, a campanha saiu meio na base do improviso. Com pouquíssimos recursos financeiros, e ainda por cima sabendo que eu não era nem de longe a pessoa mais popular no prédio, usei a gráfica de um amigo para imprimir um punhado de folders cheios de árvores, bichos, mares e sóis, dizendo assim:
- Vote no ambientalista do condomínio! Por um edifício mais verde!
Um amigo publicitário foi quem sugeriu esse rótulo de ambientalista do condomínio. Dizia que era marcante e tinha tudo a ver com a minha luta. Segundo ele, a força do rótulo poderia seduzir aqueles eleitores que encaram as eleições da mesma forma como escolher um sanduíche na lanchonete. O sujeito vê a foto no painel luminoso, acha-a bonita, nem se informa sobre todos os ingredientes do lanche, também não se dá ao trabalho de ler o cardápio para comparar o lanche da foto com as demais opções, e seduzido apenas pela imagem forte, pede logo um igual.
Porém, alertou o publicitário, a eleição nem sempre é composta somente por eleitores descompromissados. Há também aqueles politizados, que querem se identificar com alguma uma bandeira do candidato, de preferência de apelo popular. Daí que no folder ele sugeriu colocar alguma promessa do tipo enxugar despesas condominiais. Então, o folder ficou assim:


VOTE NO AMBIENTALISTA DO CONDOMÍNIO!


A favor da reciclagem em todas as suas formas, o ambientalista do condomínio é contra o desperdício, inclusive do seu dinheiro, caro condômino. Proponho a instalação de um sistema de reúso de água, pretendo ainda implantar placas solares na cobertura, pois um estudo projetado comprova que em seis meses já teremos recuperado todo o retorno do investimento inicial, e faremos uma economia média de 30% ao mês em relação às contas atuais.

Minha mulher sugeriu outras ideias boas também. Lembrou do meu tio, um arquiteto paisagista que gosta muito da gente, então mandamos imprimir outro folder, dessa vez garantindo que uma vez eleitos, conseguiríamos um projeto gratuito de paisagismo para o prédio, que além de proporcionar bem-estar e inegável prazer estético aos moradores, também valorizaria o preço das unidades condominiais.
Foi uma semana intensa distribuindo os panfletos antes e depois do trabalho, e depois passávamos a noite discutindo quais estratégias adotar para o debate no dia da Assembléia. A cônjuge dizia que era muito importante olhar no olho da plateia, dizer as coisas com firmeza, mas sem jamais perder a simpatia. Foi com enorme satisfação que durante a mesma semana encontrei alguns condôminos na garagem, e eles demonstraram bastante simpatia à causa ambientalista. A dona Jheny, por exemplo, disse para não tirarmos o vaso de jeito nenhum, mesmo que eu saísse derrotado, pois ela já morava lá há mais de três décadas, e se fosse o caso, ele segurava a bronca da multa. Já o seu Alcides do segundo andar comentou com simpatia sobre o sobrinho agrônomo, que também podia me dar umas dicas de nitrogenados para fazer a planta do vaso crescer melhor e ficar mais verdinha. Graças à campanha eleitoral, descobri que não estava sozinho, sim, havia alguns simpatizantes do vaso e da causa verde, o que me dava alguma confiança para enfrentar as urnas.
Por outro lado, o embate prometia ser duro. Quando a oposição descobriu que estávamos distribuindo folders de campanha, não perdeu tempo e fez o mesmo. Só que ao invés de fazer como eu, lançar uma agenda programática, oferecer propostas sérias para o mandato, eles desceram ao terreno baixo da calúnia, injúria e difamação. Disseram que se eu mantinha até hoje a plantinha no corredor, ignorando por completo a última Assembléia, então logicamente que uma vez no poder, eu atropelaria a lei condominial e cometeria desmandos muito maiores. Era um jogo pesado. Os puxa-sacos de plantão da oposição, aqueles que teriam assento garantido no conselho financeiro se o cara ganhasse a eleição, saíram espalhando pelos quatro cantos do condomínio que o candidato ambientalista era um maluco beleza que vinha com esse papo de paz, amor e natureza, mas no final de semana perturbava toda a vizinhança do bloco A com festinhas que se arrastavam madrugada adentro. O mais gozado foi quando, uma noite antes da eleição, abriu a porta do elevador só comigo dentro, e quem apareceu? Ele, meu adversário político. Espantou-se como se estivesse diante de uma assombração. Nem chegou a dizer “boa noite” e aparentou profundamente amedrontado. Isso me fez perceber que sim, nossa campanha o intimidara, o sujeito agora me respeitava como adversário e, tanto quanto eu, tinha muito medo de perder a eleição.


A ELEIÇÃO


Pouco antes de descer ao salão de festas, minutos antes da Assembléia começar, fui cuidar do figurino. Escolhi uma camisa toda psicodélica, arrebatada no Mercado Mundo Mix, cheia de ondas azuis eletromagnéticas e distorcidas. Uma estampa bem chamativa, bem chocante, bem com a cara de Mercado Mundo Mix. Segunda medida da noite: preparei um chá de erva cidreira, gengibre e folhas secas de romã para acalmar os nervos. E desci para a reunião carregando o cálice de barro fumegando, que mais parecia uma imitação vagabunda de Santo Graal. O salão de festas já estava lotado. No entanto, evidentemente a razão para um quórum tão alto não tinha nada que ver com o meu vaso de plantas, e tampouco com a própria realização da eleição para síndico. Como sempre, só mais uma chance de a turma reivindicar redução nas taxas de condomínio e exigir cobranças mais enérgicas dos inadimplentes, que cresciam dia após dia.
Na mesa principal, defronte às cadeiras espalhadas pelo salão, uma pessoa da imobiliária abriu os debates concedendo a palavra primeiro ao meu opositor:
- Quero ser síndico porque não suporto mais ver esse prédio ao Deus dará. Os apartamentos de cima estão com infiltração e ninguém faz nada. Roubaram o rádio do carro do 33B na garagem, e nada também, não puseram câmera, aliás, nem uma cerquinha elétrica sequer. Se eu for eleito, a primeira coisa que pretendo fazer é reduzir a folha de pagamento demitindo o vigia da noite, pois me sinto um otário sustentando alguém que simplesmente passa a noite dormindo.
Dessa vez não aguentei. O Miguelito era brother.
- Eu não! Sou totalmente contra mandar embora o Miguel! Por um acaso vocês já experimentaram a cocada da mulher dele? São simplesmente as melhores que já experimentei! Estou até vendendo lá na firma, precisam ver o sucesso que faz as de abóbora.
Naquela hora, o sujeito calvo do apartamento 41, bloco A surtou. Falou berrando que havia assuntos sérios demais para alguém ficar de brincadeira. E embora até fossem reais as virtudes das cocadas e o meu apreço pelo porteiro da noite, também era público e notório que Miguel roncava em serviço. Sendo assim, a maioria esmagadora era mesmo a favor de sua demissão. Para agravar, o meu adversário político não perdeu o fio da meada:
- Estão vendo? Eu não falei que esse rapaz não era pessoa séria? Não disse que o ambientalista é um fanfarrão?
- Eu sim sou sério e tenho uma proposta para o nosso condomínio!
- Na minha gestão, as taxas diminuirão e os inadimplentes não terão mais vez. Vamos pagar um escritório de advocacia para penhorar o apartamento, se for necessário. As reformas que há muito precisam ser feitas, prometo que comigo sairão do papel. Na minha gestão, transparência será a palavra. Vocês terão prestação de contas de tudo. Qualquer rubrica, por mínima que seja, será lançada no balancete mensal. Pretendo ainda propor diversos mudanças no lay out da área social, deixar esse salão com uma cara melhorzinha, arrumar o hall social, e a primeira medida será tirar de uma vez por todas aquele vaso horrível do candidato aqui ao meu lado..
- Você sabe por que as minhas plantas estão quase morrendo?
- Por um acaso você sabe por que isso está acontecendo? - Sim, claro. Porque você não consegue cuidar nem de uma planta, quanto mais do condomínio...
- Engano. Porque você secou a minha plantinha, seu infeliz. A tua energia é tão ruim, você é tão mala, que a avenca simplesmente não aguentou...
Daí em diante o circo pegou fogo. O cara ficou todo machão, levantou-se e quis sair pra cima. Acabou sendo segurado por várias pessoas, enquanto meu coração quase pulava para fora da boca. Fiquei tão desiludido com tudo, que depois disso não consegui mais levar o papel e a briga adiante. Joguei a toalha deixando a reunião sem nem participar da votação, convicto de que política carece de vocação, e definitivamente eu não a tinha.


O RESULTADO


Votação esmagadora para ele. Do meu lado, um voto da dona Jheny, um do seu Alcides, outro da magricela macrobiótica cujo nome ora me falta, além de mais dois ou três sem origem identificada. Na manhã seguinte, as plantas foram tiradas do lugar, restando como consolo a multa que nunca foi aplicada. O opositor assumiu o mandato e nunca cumpriu quaisquer de suas promessas de campanha. Com o tempo, os condôminos que o conduziram ao cargo descobriram aquilo que eu e as plantas já sabíamos: o sujeito era um palerma irremediável. Pediram o seu impeachment, mas ele só abandonou o cargo depois de muita resistência, quando a situação chegou ao insustentável e foi organizada uma liga de velhinhas rebeldes. ps: Qualquer semelhança da história com a realidade terá sido mera circunstância do acaso.




quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O FLERTE



Outro dia um primo meu lá do Rio convolou núpcias. Grande evento na família Zequinha ter casado, tanto que num lapso de extrema sinceridade, o noivo interrompeu a cerimônia para confidenciar, diante de seus mais de 200 convidados, que nunca imaginou que aquele dia pudesse de fato chegar. Sabe como é, carioca, surfista, bicho acostumado a andar solto, muito embora, ao que sei sobre seu respeito, trata-se de sujeito muito bacana, decente e trabalhador. Casou-se com uma produtora da Globo e por conta disso os bancos da igreja estavam todos estrelados. Olha, aquele ali é o Marcelo Serrado, cochichava a cônjuge no meio do sermão. E esse aí, sentado ao seu lado, é o Marcos Palmeira. Ah, e tá vendo lá na primeira fila? Nossa, como é mais bonito ao vivo... Marcelo Novaes? De minha parte, só reconheci a Luana Puovani, que ao final da cerimônia desfilou pelo corredor central numa pompa tal, que alguém precisava ir lá avisar a ela que não era a noiva e sim a madrinha da noiva. Sondagens globais à parte, antes de acabar a missa o meu primo interrompeu de novo o cerimonial para convocar a presença do presbítero também na festa. Ao melhor estilo carioca, recorreu ao tentador argumento de que o pároco deveria relaxar um pouco da agenda sacramenteira com umas cervejinhas. Muito educado ele agradeceu, mas não foi, nós sim fomos ao clube dos Macacos, um lugar lindo, cercado de palmeiras imperiais, estrategicamente localizado num ponto alto e isolado do Horto Florestal.
Chegando à festa, a orgia etílica já desfilava a todo vapor em cima das bandejas. Um tal de Prosecco pra lá, cerveja pra cá, até uísque naquela noite cálida descia bem em mim por causa do gelo. Até que chegou aquele momento X das festas de casamento em que de duas uma: ou o DJ fica muito bom, ou simplesmente a bebida sobe à cabeça da turma (ou a conjugação dos dois), enfim.. Fato é que de uma hora para outra todo mundo levanta da mesa, desiste de papear, e vai aos pouquinhos se aproximando da pista de dança. Isso aconteceu quando minha caçula de um ano dormia pesado no carrinho de bebê e a de seis se aconchegava por conta no sofá. Cenário perfeito para dois filhos adultos de Deus, no caso eu e a cônjuge, lembrarmos que há sim vida fora do núcleo familiar. Fomos também para a pista aproveitar o convidativo set list do DJ, que à ocasião recorrera ao hit “Jungle Boogie” de George Clinton. Feliz da vida, fechei os olhos, mergulhei na melodia da música, quando de repente um cara de porte razoável invade a rodinha e vem seco na minha direção:
- Escuta aqui mermão. Se liga aí que tu não tira o olho da minha mina, tá ligado?
- Como assim?
- É. Até ela já veio me dar um toque. Faz seguinte. Fica na manha, pára de olhar pra ela e eu te dou um desconto e faço de conta que nada aconteceu.
- Olha, entendo tua preocupação, mas na boa? Tô aqui na minha, curtindo o casório do meu primo ao lado da minha mulher (apontando-a), e até as nossas filhas estão aqui. Tá vendo aquele carrinho de bebê ali? É a pequininha. A mais velha é aquela babando lá no sofá, ao lado da piscina. Sinceramente? Nem sei quem é a tua mulher..
- Não vem com 171 pra cima de mim que antes da minha mina falar que tu não tira o olho dela eu já tinha sacado todo o movimento.
Nesse momento de reiteração da participação da garota na crença de que eu a cobiçava, o sangue subiu à cabeça, e mesmo o sujeito sendo o dobro de mim, senti um enorme desejo de mandá-lo para a meretriz que o pariu. Ao invés, porém, de partir para o tapa, com o corpo e a mente anestesiados pelo álcool, adotei uma postura mais política:
- Cara, olha aqui no fundo dos meus olhos...
- Eu te amo. Vá com Deus. – estendi-lhe a mão
Impressionante como a frase “eu te amo”, depois a “vá com Deus” seguida de uma mão estendida anulou o ímpeto do machão. Durante e depois de cumprimentá-lo, o sujeito ficou um tempo parado diante de mim, estatuesco, até esboçar uma careta de não mais saber por que raios estava ali. Saiu de mansinho, tão de mansinho, que nem de longe lembrava o pit-bull de minutos antes avançou. Ainda passei um bom tempo curtindo e dançando na pista sem mais vê-lo por perto. Inclusive, sinto bastante não ter matado a curiosidade de descobrir se além de insegura, a namorada do cara era bonita. Curiosidade meramente científica, já que tenho uma teoria (ainda não definitiva) de que quanto mais bonita a mulher, mais insegura. Queria, portanto, coletar bases empíricas mais robustas antes de afirmar com segurança se há mesmo essa tendência, uma vez que regra absoluta eu também já sei que não é. A caminho do hotel, no táxi amarelinho, com a cabeça deitada sobre o ombro da cônjuge, apreciando a caçula desmaiada no bebê-conforto, sentindo as pernocas da mais velha sobre meu colo, lembrei que felizmente as minhas mulheres são lindas e seguras.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A FAVELA DO MANGUE


Bons alqueires de Mata Atlântica separam a favela do Mangue da nossa churrasqueira, erguida no meio da floresta. Isso significa que embora estejamos confinados em um condomínio fechado, ao lado esquerdo do lotealmento, onde os vizinhos são apenas árvores e bichos, não foram levantados muros de proteção.
Tempos atrás, veio a Hildinha me contar sobre o pessoal da favela do Mangue, que se embrenhou na mata e aproveitou a inexistência do muro para entrar no condomínio. Algo como 1 km de floresta densa desbravada. Curiosamente, havia mais de 15 casas para eles elegerem como ponto de chegada, e foram escolher justamente a nossa churrasqueira, felizmente não nos dias em que costumamos ocupá-la. Os trilheiros do manguezal cruzaram a mata no meio de semana, por ser essa a melhor ocasião para surrupiar casas de veraneio. Ao que soube depois, até fizeram sim pequenos furtos na vizinhança, não, porém, na nossa casa. Mas deixaram uma caixa de cerveja camuflada atrás da churrasqueira, no meio da floresta, a mesma qual decidimos consumir por acharmos que os donos não voltariam para pegá-la.
Motiva-me uma reflexão sobre o episódio porque antes da invasão deles ao condomínio, eu já havia me dado o direito de fazer o inverso. Tanto quanto os larápios, invadi um mundo ao qual não pertenço, não a pé e pelo mato, de bicicleta e pela estrada. Descobri a favela do mangue por total acaso, numa manhã de sábado qualquer, indo comprar peixe nas bancas da praia do Perequê. Sabe como é, circular de bicicleta pelo mundo desperta curiosidades nas pessoas que os vidros do carro te privam, então, pintou uma curiosidade de desvendar o que a orla do Perequê escondia. Logo atrás das primeiras bancas de peixe, saí ziguezagueando por um beco bastante comprido, formado por muros altos das primeiras casas de alvenaria. Ao final do beco, acabam as construções mais sólidas e chega-se, enfim, à favela. Um conjunto de casas coloridas, uma enorme palafita erguida sobre o rio que deságua no mar. Na maré baixa, os moradores dos casebres de madeira carcomida e tinta descascada presenciam hordas de crustáceos que sobem pelas estacas e surgem por todos os lados. Devido ao forte calor que faz naquele canto do litoral paulista, o esgoto das casas se mistura ao enxofre do mangue, e principalmente na maré baixa, o odor fica desagradável. Já na maré alta o cheiro alivia. Postas de lado as nuances olfativas, curti bastante os pontilhados que conectam as casas e balançam como se você estivesse num barco, com a vantagem de que prazerosos estalos são emitidos pelas rodas da bicicleta em movimento na superfície marceneira. Em volta dos casebres de porta aberta, crianças de membros esquálidos e barriga roliça empinam pipa, enquanto suas mães se dividem entre uma bronca e outra descamada da tainha. Gospel, rap e forró de Fortaleza compõem a trilha sonora do ambiente. Gatos lambem as cabeças de camarão descartadas aos montes no chão. No fundo da favela, onde acabam as habitações, começa o campinho, local em que a molecada mais velha se reúne para bater uma bola e lançar tarrafa na parte mais funda do rio. Embora aquelas águas estejam poluídas, dizem que tiram peixes, caranguejos e até enguias. Na última vez que estive na favela do Mangue, fiz questão de ir acompanhado. Pus a Maricota (minha primogênita) na cadeirinha da bicicleta, pois sabia que ela se interessaria pelo cenário de cinema ao ar livre:
- Pai, eles que são os “pescadores”? – repetia incansáveis vezes, como se tal condição os transformasse em seres de outro planeta. Até que mais para o meio do rio, numa ruela então desconhecida de mim, veio caminhando um moleque grande, alto, não mais que dezesseis anos. Mancava muito, possuía escoriações por todo o corpo, seu olhar denunciava um terrível sofrimento. Aproximando-me mais, notei ainda uma enorme ferida no couro cabeludo, que sem exagero? Parecia expor os miolos do garoto. Mais à frente, outros dois rapazes nos encararam de um jeito que deu vontade de deixar de exisitir.
Tempos depois, quando veio a Hildinha reportar a história da trilha ligando a favela ao condomínio, confirmei a suspeita de que aquele mangue guarujaense abriga espécimes da mais alta periculosidade. São poucas, é verdade. A maioria é da paz, no entanto há sim alguns tipos bem temidos que habitam o ecossistema local.
Sem qualquer pretensão de militância social, menos ainda querendo suscitar discussões políticas ou ideológicas, mas sem também sentir vergonha de assumir uma certa inocência, própria de quem vê poesia na pobreza só porque nunca soube o que é de fato viver na pobreza; termino por aqui, curioso para saber se algum dia no Brasil os pobres deixarão de ser invasores na terra dos ricos, e os ricos na terra dos pobres.


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

RAVE INFANTIL

No aniversário de sete anos da mais velha, a cônjuge teve a brilhante ideia de comemorar fazendo um acampamento no quintal com todas as crianças da classe. Começou às oito da noite, com as crianças comendo uma pizza. Depois elas partiram para um caça ao tesouro contendo mais de quinze pistas espalhadas pela casa. Finda a caça, uma balada pesada na sala que deixou as crianças excitadíssimas. Para acalmar os ânimos dançantes, emendamos uma sessão de cinema. Pantera Cor de Rosa. Por fim (uma hora tinha que ter um fim), já perto de uma da manhã e com todos dentro da barraca, uma historieta para embalar o sono geral da nação. Trégua curta na madrugada, interrompida às seis horas da manhã seguinte, com a molecada curtindo a barraca e aproveitando os primeiros minutos do sol para ler revistinha da Mônica. Ainda recebemos os pais que vieram tomar um café da manhã e pegar os filhos. Ou seja, a rave infantil começou às oito da noite de sexta e acabou ao meio dia de sábado. Diante da curiosidade de alguns pais sobre a noitada, e particularmente sobre como conseguimos sobreviver a ela, elaborei um pequeno diário contando como foi essa experiência.


BALADA 1


Já era quase dez da noite, e eu e meu sogro lá, procurando specks para montar as barracas no quintal, ao mesmo tempo em que ouvindo o rescaldo da música “baby” (Justin Bieber) pela quarta ou quinta vez, até que o Matuco deixa a pista e comparece na área pra dividir um pouco da intensidade do momento:
- Victor, preciso te falar uma coisa...
- O quê Matuco?
- É a música.
- O que tem a música?
- A música está entrando dentro de mim, a música entra dentro de mim, fica lá, não sai de dentro da minha cabeça e...
Vira as costas e volta correndo para o palco.
- Isso porque não tomou um gole de cerveja. – meu sogro.


BALADA 2

Lá pelas onze da noite, depois de a pizza emendar com a caça ao tesouro e a montagem das barracas, eu já estava o pó. Mas a DJ cônjuge continuava lá, firme e forte, alternando Bieber, Michael Jackson e Black Eyed Peas nos embalos de sexta à noite. Percebi então que se não fosse eu o reacionário da casa, aquilo nunca teria fim. Coitados dos vizinhos. Imbuído por esse falso altruísmo que - pah - subitamente desliguei o som, e como resposta imediata, aquele ahhhhh em coro.
- A gente não quer parar agora! É! Liga aí de novo. Põe o Maicol.
- Crianças... Só uma pergunta.
- Quem aqui considera que essa está sendo a melhor balada da vida?
- Euuuuuuuuuuuuuuuuu! – unanimidade.
- Então não me encham mais o saco e agora vão lá atrás decidir quem vai dormir com quem nas barracas.
- Uhhhhhhhhu..



CAÇA AO TESOURO 1


Palmas para a escola Alecrim. Um ano depois do projeto Grécia, nossos filhos ainda preservam a memória mitológica. Se os senhores pais, tal como nós, suam a camisa para chegar ao final do mês e honrar aqueles infelizes boletos do Bradesco, imaginem que a pista nº 2 era essa:

UMA SEMENTE É LANÇADA À TERRA. NASCE ENTÃO UM FRUTO, QUE DEPOIS DE COLHIDO, VOLTA AO REINO DA TERRA. LÁ (NO REINO DA TERRA), QUEM ACEITOU ESSE FRUTO PAGOU COM A LIBERDADE.

Com bem pouca ajuda, pouca mesmo, eles foram se lembrando de Hades, Perséfone, a semente de romã oferecida, e aí a Maricota os levou para conhecer a Romãzeira que está se recuperando ao lado do portão social.


CAÇA AO TESOURO 2


Palmas agora para a Laís. Na caça ao tesouro, havia o seguinte combinado:


CRIANÇAS,
AGORA VOCÊS FORMAM UMA EQUIPE, QUE TERÁ UMA MISSÃO A CUMPRIR:
ENCONTRAR “O TESOURO DA BALADA”.
MAS PARA ISSO, PARA ENCONTRÁ-LO, VOCÊS DEVERÃO SEGUIR AS PISTAS QUE ESTÃO ESCONDIDAS PELA CASA.
ESCOLHAM ENTÃO NA EQUIPE UMA CRIANÇA QUE FICARÁ COMO A RESPONSÁVEL PELA LEITURA DAS PISTAS.
SEMPRE QUE ALGUÉM ENCONTRAR UMA PISTA NOVA, DEVERÁ ENTREGÁ-LA À LEITORA ESCOLHIDA, QUE A LERÁ EM VOZ BEM ALTA PARA QUE TODO O RESTO DA EQUIPE POSSA OUVIR.

Aproveitando o momento político do país (semanas antes da eleição da Dilma), fiz questão de instaurar um sufrágio infantil:
- Quem aqui vota em fulano? – uma mão estendida.
- Quem vota em sicrano? – nenhuma mão.
- E no beltrano – de novo sem mãos.
Candidatando um por um, deixando a Laís de propósito por último, e então, quando faltava candidatar só mais uma criança antes dela, a própria finalmente se manifestou:
- Victor, e eu? Você está esquecendo de mim...
- Crianças...
- Alguém aqui quer votar na Laís?
Até quem já tinha prestigiado outros candidatos decidiu se unir àquela onda democrática. Liderança nata. Nata no sentido de natural, de algo nascido, e não foi só o resultado da eleição que provou o quanto a Laís conquista (e não impõe) a liderança. Conforme as pistas eram encontradas, claro, outras crianças também manifestavam a sua vontade de lê-las. Todas queriam provar às demais e a si próprias que superaram esse desafio tão importante e atual na vidinha delas: a alfabetização. Foi quando intervim novamente para esclarecer que sim, isso até seria possível, desde que a própria Laís deixasse, e para quem ela deixasse, afinal, foi o grupo que agora há pouco a elegera para esse papel. Logo, se cabia a alguém delegar o poder, esse alguém só poderia ser o seu detentor. Foi aí que a alma generosa da menina se revelou. Não apenas por permitir que os outros participassem da leitura, quem a conhece minimamente sabe que isso não surpreende. O mais incrível foi o cuidado que a Lalá teve de abrir a oportunidade para cada uma das crianças interessadas, sem jamais permitir que uma mesma repetisse a leitura, a despeito dos insistentes pleitos daqueles que já tinham lido.



CAÇA AO TESOURO 2


DÉCIMA PISTA

SOU UM MEIO DE TRANSPORTE MUITO ANTIGO


Em disparate para a garagem em busca do tal meio antigo de transporte, nenhuma criança nota que a bicicleta está camuflada detrás das toras de madeira da área de serviço. Com a equipe meio sem norte, meio sem ideias, o Dé raciocina, olha pra mim, parece pensar duas vezes antes de falar, mas mesmo assim decide continuar:
- Ô Victor..
- Esse teu carro aí já tá meio velho, não tá não?



CAMPING 1



Esgotados, quase desfalecidos, não as crianças, eu e a cônjuge, bendita a cine-sessão de Pink Panther. Henry Mancini acalmou um pouco os ânimos da turma, mas nem de longe solucionou o problema. Pior. À meia noite eu e a cônjuge já estávamos sozinhos no time dos adultos. Restaram-nos onze crianças para gerenciar, já divididas em três barracas, todas começando a se aconchegar em seus incomuns aposentos. Claro que àquelas alturas do campeonato, nada mais nelas soava-nos gracioso. Brincadeiras de pum, cócegas, risadinhas, tudo era inoportuno. De cima da janela do quarto, deitada na cama, a cônjuge já dava mostras de jogar a toalha:
- Quietos! Silêncio agora! Se vocês não obedecerem a gente, vamos mudar a distribuição das barracas. Outra coisa. Quero que todo mundo devolva pro Victor essas malditas lanterninhas.
Parênteses. A caça era ao tesouro, mas não um tesouro qualquer. A caça era ao “tesouro da balada”. Então, além das tradicionais perucas e óculos, a cônjuge arrematou na 25 de março aquelas varetas luminosas que animam 9 entre 10 pistas de casamento. Obviamente, dentro das barracas, na curtição da noite, a cambada de impúberes não parava de chacoalhar os tais bastonetes coloridos, brincando de lhes dar as mais diversas formas. Sentindo-me uma espécie de auditor fiscal da receita federal, saí austero pelas portas das barracas, recolhendo um a um os instrumentos. Depois que recebia umas quinze varetas, como todo bom fiscal aduaneiro, não me contentava:
- Cê tá pensando que eu sou lóki, bicho? Passa o resto que eu sei que tem mais...
E tiravam lá mais uns dez, escamoteados debaixo do colchonete. Levei tão a sério a blitze, que talvez por isso a Milena tenha, em nome de toda a turma, resolvido se vingar. Com requintes de crueldade, a cada dois minutos ela gritava de dentro da barraca:
- Victor! Achei mais um!
Chegou uma hora que eu já não agüentava mais levantar do chão pra pegar a porcaria dos bastãozinhos:
- Chega! Pelo amor de Deus, chega! Pode ficar com as tuas lanterninhas, não adianta nem me chamar que eu não vou mais me levantar pra pegar.


CAMPING 2


Como sempre, a retórica punitiva não surtia o efeito calmante que dela se esperava, mas na prática nós não conseguíamos fugir da vala comum das ameaças. Ninguém parava quieto, nenhuma criança se rendia ao sono, e diante disso, tive a brilhante ideia de lhes contar uma história qualquer. Já era quase uma da manhã, então, deitei exausto entre as três tendas sem a menor disposição para tirar um enredo da cartola. Ao invés de tentar inventar, apelei para uma messiânica sessão nostalgia. Em voz baixa, pausada, quase letárgica, resgatei os meus nove anos e a primeira vez acampando no meio do mato. Sem falsa modéstia? Foi fácil até conduzir a molecada para um diálogo mais direto com a natureza. Remeti ao barulho do rio descendo a jusante, o vento sacudindo a copa das árvores, o canto dos pássaros despertando com o sol, e justamente nesse momento new wave da noite, um grilo de verdade que passava pelo jardim também resolveu dar uma forçinha. Ouçam crianças, ouçam com atenção. Há um grilo entre nós. A rítmica da história, que começara a dez por hora, dali a pouco já estava a menos de um por hora. Em seu conteúdo, obviamente nada de emocionante acontecia, só as tais sensações e sons. Diante do repertório de meditação in natura se esgotando, notei, num mix de orgulho e alívio, que metade da turma já dormia pesado. Faltava, porém, a outra. Nessa toada de não perder o fio da meada, aconteceu até uma inesperada empolgação de minha parte. Resolvi me levantar do chão e passar a contar a história de pé, circulando pelas três barracas. E a história que começou como uma obrigação, um mero estrategema para se livrar de um problema, transformou-se num discurso filosófico sobre a existência infantil:
- Crianças...
- Antes de fecharem os olhos e caírem no sono, queria que soubessem de uma coisa muito importante. Saibam que é muito mágica essa possibilidade que lhe deram de existir. Não importa se quem lhes proporcionou esse dom tão precioso foram apenas os seus pais, ou se antes deles teve um tal de Deus, ou quem quer que seja. O que verdadeiramente importa é que vocês existem, são seres queridos e amados; logo, por essas privilegiadas razões, vocês têm tudo para conseguirem aquilo que todas as pessoas no mundo querem, mas só algumas de fato conseguem: a felicidade!
- Todas as fases da vida são incríveis. Todas têm a sua magia e encanto. Mas se me perguntam: Qual a melhor?
- E eu não teria dúvidas em responder: a fase em que estão!
- Aproveitem então. Aproveitem, agradeçam à escola, pois sem ela vocês jamais teriam se encontrado e formado esse grupo tão unido, tão amigo, tão...
De repente, da barraca azul ao lado da janela da cozinha, o discurso inflamado é interrompido por um tímido - clap clap clap - cuja autoria remanesce anônima, ainda que fundadas suspeitas recaiam sobre a insaciável Flor de Maria. Independente de quem tenha vindo, conforta-me lembrar que nessa faixa etária as palmas ainda são sinceras.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

DOBRADINHA DE PRAXE

Outro dia morreu um parente distante. Quer dizer, bem distante vai. Na verdade, só conheci melhor a sua cara depois dela ficar pálida ali, na madrugada do velório. Dado, portanto, esse meu reduzido grau de intimidade com o defunto, até fechei os olhos defronte ao caixão, mas ao invés de lhe dedicar alguma oração e desejar sorte na nova fase, confesso que fui mais egoísta: aproveitei o ensejo para pensar na vida. Ou melhor, na morte. Nada mais apropriado do que um velório para lembrar o quanto a morte faz parte da vida, e que de certezas sobre o futuro, só ela. Gostemos ou não, lembrar uma vez ou outra dessas obviedades talvez nos ajude a sermos mais felizes, só não me pergunte o porquê. Vai ver porque passamos a dar mais valor ao fato de estarmos respirando, ainda que o ar não ande lá dos melhores.
No dia seguinte completei a dobradinha de praxe, comparecendo também ao enterro, que se realizou numa manhão fria e ensolarada no Araçá. Havia um bom tempo não ia a esse cemitério, e para minha surpresa, adorei o lugar. Veja bem, isso não significa que eu pertença a alguma tribo dark, emo, ou a qualquer outro grupo social pós-moderno, caracterizado pelo culto ao vazio e à melancolia. Apenas nunca, jamais imaginei encontrar tamanha paz no Araçá. Desafio o paulistano a localizar, pelo menos nesse miolinho barulhento da cidade, um lugar tão silencioso e pacato. Impossível. Apesar de a dr. Arnaldo estar ali, fazendo fronteira com toda a parte alta do cemitério, a despeito de a avenida Paulista e a Rebouças começarem onde praticamente os túmulos terminam, se você entrar no Araçá, não terá como discordar: a paz total. Para se ter ideia, lá ainda é possível reparar no barulho do vento chacoalhando a copa de árvores frutíferas. E onde não estão as árvores, estão centenas de artísticas geniais, como enormes esculturas de Brecheret e de seus conterrâneos. Sobre o fato de ter um monte de gente enterrada por todos os lados, pelo menos pra mim não foi motivo algum de mal-estar. Tudo uma questão de perpectiva. Por exemplo, outro dia a mais velha passava de carro pela dr. Arnaldo, e ao reparar nas construções acima do muro do cemitério, lançou a sua(perspectiva):
- Olha pai... Um condomínio de mini-igrejinhas!
Perfeita a descrição. São tantas torres, cúpulas, Cristos e Virgens Marias que o lado subterrâneo do cemitério passa até despercebido. Impossível não se interessar pela arquitetura das tais mini-igrejinhas. E embora haja uma certa predominância do arcaico no condomínio dos mortos, felizmente não tem nada a ver com o neo-clássico brega que infesta os condomínios de vivos. No Araçá, construções góticas, vitrôs coloridos e azulejos portugueses convivem com alguns monumentos e mausoléus mais modernosos.
Agora, a melhor descoberta que esse enterro me deu foi a descoberta da curiosa literatura post-mortem. Muito curiosa. Dentre as milhares de homenagens póstumas que os saudosos parentes grafam nos túmulos, algumas são verdadeiras perólas. Pena que muitas já tenham escapado à memória. Lembro bem das longas despedidas, várias em tom dramático, quase todas afirmando que sim, trata-se mesmo de despedida, porém sem crises, daqui a gente já se vê por aí. Alguns poucos epitáfios se destacavam pelo teor enxuto. Breves declarações de amor do tipo: “Osório, mamãe te amará pra sempre. Fica com Deus, meu filho.” – e pronto, palavras econômicas não raro dizem mais.
Como o cemitério é o segundo mais antigo da cidade e está num bairro da elite, prevalecem os textos longos e empolados de doutores do início do século passado. Clima de museu ao ar livre. Só o que jamais imaginei encontrar nos epitáfios era humor negro. Dá pra acreditar num negócio desses? Pois é. Havia uma mensagem lá que eu simplesmente não pus uma fé. Impossível esquecê-la. Lia-se, cravado na lápide:

SAULO ERA UM JOVEM INTRÉPIDO QUE ADORAVA AUTOMÓVEIS RELUZENTES.
GOSTAVA DE TODOS OS TIPOS DE CARRO.
2.0
1.8
1.6
1.4
1.0
um ponto final

Tio Armandinho.

Tá na cara que esse tal de Tio Armandinho é um gozador de marca maior, só que do gênero “sem limites”. O tipo de sujeito que não respeita ninguém, zomba até da autoridade da morte. Primeiro lugar: quem garantiu a Tio Armandinho que a vida é o ponto final? E se de repente, o ponto final não seria só mais um recomeço? Afinal, se formos pensar em termos puramente estatísticos, há 50% de chance que ele esteja errado (ou certo). Outra coisa. Do jeito como Tio Armandinho escrevera, ficou uma sugestão implícita de que só porque o sobrinho adorava carros e possuía uma mente intrépida, um automotor do tipo reluzente o levara à morte. Isso até pode e deve ser a mais pura verdade. Ma pera lá. Colocar no túmulo do cara?
Moral da história: esse tio Armandinho é um mala.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

O PRIMEIRO TRABALHO A GENTE NUNCA ESQUECE

Elaborar um relatório de todas as atividades no começo do mês. Carregar pra lá e pra cá pilhas de processos. Casualmente, elaborar ofícios a outros órgãos públicos sujos e anacrônicos. Rascunhar despachos ministeriais padronizados. Carimbar folhas velhas de papel. Manuscrever (não digitar) centenas de nomes e números sem qualquer sentido no livro-carga de autos. E por fim, atender ao balcão das lamúrias.
Atender ao balcão era a cereja do bolo. Aquele móvel velho que separava a minha mesa do público era uma espécie de imã para a loucura. Posso estar exagerando, mas tinha a perfeita sensação de que todas as pessoas mais piradas que iam ao Fórum Central se sentiam atraídas a terminar prostradas no balcão, defronte à minha mesa. Algumas figuras lendárias batiam ponto na sala 324, como um albino de cabelo armado que jurava ter sido abduzido na madrugada anterior. Meus colegas de repartição morriam de medo quando surgiam essas figuras muito fora da curva, mas, pessoalmente, confesso: adorava dar trela às histórias e ouvir até onde iam os limites da insanidade humana. Abduzido é? E o cara começava a sustentar, cheio de propriedade, descrevendo a cena nos mínimos detalhes. Daí te levaram pra dentro da nave? E quantos eram? Mais de dez? Tinha uma ET que era gatinha? Não acredito! Agora só falta você me dizer que a ET fez contigo algo mais do que só abduzir?
O primeiro trabalho a gente nunca esquece. Pelo fato de trabalhar na seção de conflitos familiares, uma cena muito comum era o pai entrar na sala junto com a filha adolescente embuchada, e bater a mão no balcão:
- E aí moço? O que faço agora? Hã? Quer dizer que ela abre as pernas para um pé rapado qualquer...
- E agora sou eu que pago a conta?
- É justo?
Tinham também os loucos perigosos. Certa vez entrou um daqueles com gramíneas no cabelo e cecê acumulado ao longo de no mínimo duas semanas, e que na maior naturalidade já chegou intimando:
- Cadê o juiz corregedor? Quero falar com ele. Ele está?
- Sobre o quê, senhor?
- É que depois de quase 30 anos aí pagando cana no interior, saí esses dias, voltei pra rua, e sabe como é né, tô querendo ficar só na moral, mas os segurança lá da rua não tá deixando eu cuidá dos carro dos bacana.
- E?
- E eu quero falar com o juiz corregedor aí pra vê se o homem resolve as minhas treta, porque se não, vou ter que voltar a delinqüir, cê tá me entendeno?
Pausa. Quase trinta anos, "cumprindo” cadeia? No Brasil? Deve ter sido condenado a uns 150 anos na sentença, e na cadeia devia asfixiar um por mês. Detalhe: era bem cedo. Só estávamos eu e ele na sala.
- Mas por que o senhor não experimenta cuidar de carros em outras ruas? – sugeri na maior das boas vontades.
- Tá louco? Toda rua já tem o seu flanelinha – enervado. – Peraí? É você que é o juiz corregedor?
- Não.
- Então chama logo o cara, se não eu vou ter que voltá a delinqüi. – lacrimejando os olhos.
Orientei-o a se dirigir ao vigésimo andar do prédio, onde ficava a Corregedoria Geral da Justiça. Felizmente, o sujeito se convenceu de que era para lá onde deveria ir e resolver o seu problema pontual. Mas passei uma semana pensando nele e no país louco em que vivemos.
Outro ilustre personagem que batia cartão no Fórum era uma anciã, filha de emigrantes ingleses fugitivos da primeira guerra. A velhinha atribuía a si o título de primeira sexóloga do Brasil. A senhorinha gostava de mim, já chegava me chamando pelo nome, tudo porque eu saía de braços dados com ela pelo saguão dos elevadores. Enfim, apesar de sua idade bem avançada, havia um jovenzinho de vinte e poucos que ainda a tratava como uma dama. Um dia a idosa chegou e me disse:
- Nunca se case menino. Transe à vontade, casar nunca!
- Por quê?
- Porque só tem carreirista nesse mundo! Só perdigueira oportunista...
Havia quase vinte anos que a auto-intitulada primeira sexóloga do Brasil batia às portas da Justiça para pedir pensão contra o filho, que esperava até o último minuto, quando saía o mandado de prisão, para aí sim depositar a dívida, segundo a mãe por causa da nora, uma maquiavélica que fizera lavagem cerebral nele e causou a ruptura entre os dois. Daí toda a mágoa da velha com as mulheres e com o casamento. Apesar desse motivo ácido que a levava até minha sala, a sexóloga também era uma figura genuína, com um lado bem divertido. Sempre trazia alguma novidade insólita, como a foto em P&B dela de seios desnudos na Sapucaí, numa época em que isso era crime de atentado violento ao pudor.
Agora, sem dúvida alguma o sujeito mais insano que apareceu no balcão das lamúrias foi um jovem magricelo de olhos arregalados que entrou na sala, e ao me aproximar do balcão para atendê-lo, ele começou:
- Sabia que eu sou um fantasma?
Até aí normal. Àquelas alturas eu já tinha alguns anos de Fórum, essas declarações estapafúrdias nem me impressionavam mais. Até que o gasparzinho continuou:
- Eu vou matar o juiz da 4ª Vara! Amanhã o doutor Laureano vai amanhecer comendo formiga!
- Calma, senhor. Diga qual o seu problema e vejo se posso ajudar...
Jogou sobre o balcão um saco plástico contendo milhares de documentos velhos para justificar as intenções homicidas. Mostrava uma infinidade de escrituras, termos e contratos que supostamente atestavam a sua condição de herdeiro de uma grana preta. Acontece que a herança estava toda enrolada, dessas cujo patrimônio foi amealhado em cima de corrupção, lavagem e outras origens ilícitas, e que agora, segundo o fantasma, estaria na mira de advogados, empreiteiras e magistrados, todos bem dispostos a lotear um quinhãozinho no imbróglio. Por causa disso, o único herdeiro legítimo – ele - estava temerário de que não lhe sobraria nem um cafezinho.
- Ó aqui ó...
Levantou a blusa, mostrando marcas de quatro balas cravadas entre o peito e as costas.
- Tem uma pá de neguinho aí querendo me derrubar, sabia?
- E como posso ajudá-lo em relação a isso?
- Não sei. Só sei que amanhã eu vou matar o doutor Laureano.
- Matar um juiz pode ser algo perigoso.
- Perigoso? Você lá sabe o que é perigoso?
Aí o cabra pegou pesado. Abriu uma pastinha azul e tirou uma foto de centenas de cobras tomando sol numa pedra. De acordo com o nauseabundo, a pedra da foto ficava numa ilha chamada Queimada Grande, entre Peruíbe e Itanhaém. Já aquelas serpentes, que no mundo todo só habitavam a tal da ilha no litoral paulista, estariam entre as peçonhentas mais venenosas do mundo, se não as mais (se duvida, procura no Google a jararaca-ilhoa).
- E eu fui picado por elas!
- É mesmo?
- Fui..
- E aí?
- Aí passei dois meses agonizando sozinho na cama. Suava frio dia e noite. Fiquei esse tempo todo sem saber o que é dormir uma noite inteira.
- E aí?
- Aí perdi todos os dentes da boca.
Pah.
Arremessou a dentadura sobre o balcão.
E deu-me um sorrisinho banguela.
Como ia dizendo, o primeiro trabalho a gente nunca esquece.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

BANDINHA DE GARAGEM?

Num churrasco de pós-adolescentes, Birigui sentou-se ao meu lado e uma garota o perguntou:
- E aí Birigui? Que cê anda fazendo da vida?
Essa pergunta foi feita há pelo menos quinze anos. É realmente curioso que eu recorde perfeitamente da resposta até hoje:
- Pô, tô aí fazendo arquitetura na Unip, mas minha parada não é ser arquiteto não. O meu negócio é ser cantor de banda de hardcore..
- E eu vou ser cantor!
Birigui sempre fora uma pessoa tão curiosa quanto o seu apelido. Baixinho, forte, boné inseparável, na adolescência gastava manhãs, tardes e noites dedicando-se às duas coisas que mais gostava de fazer: andar de skate na pista do clube e cantar nos ensaios de sua banda de garagem. Em meu singelo parecer, Birigui era excelente skatista, mas péssimo cantor. Sendo assim, quando nos encontrávamos ao acaso em festinhas (nunca fui íntimo da peça), mas como ele sabia que eu ouvia Ramones, Toy Dolls e Sex Pistols, então vinha me perguntar: E aí Vitinho? O que você está achando do nosso som? E na maior cara de pau eu respondia que sua banda estava cada vez melhor, a cada dia mais madura artisticamente. Diante dos elogios, Birigui não tinha o menor pudor de revelar as suas aspirações estratosféricas. Para ele, os holofotes eram apenas uma questão de tempo, logo, por que esconder as suas certezas? Além de mega-sonhador, Birigui era mega-insistente. Namorava uma menina bonita, cujo pai era dono de gravadora, e embora conste pelas más línguas que o sogro desgostasse do genro, Birigui vivia insinuando ao sogrão para levá-lo a estúdio, pois se lhe dessem uma única chance, decerto provaria todo o seu potencial. Lembro, numa festa à fantasia, quando uma amiga fantasiada de fada Sininho tomou todas e foi parar nos braços do Birigui de sonho de valsa. No dia seguinte, a ressaca não lhe incomodava tanto quanto o arrependimento.
Alguns anos depois, fui ao Fórum Central e dia dei de cara com outro personagem curioso, esse até então um desconhecido de mim: Chininha. Lembro perfeitamente de nos encontrarmos na escadaria do prédio, e sem que ninguém nos apresentasse, cumprimentamos um ao outro como se já fôssemos brothers de longa data. Chinhinha era um mestiço boa pinta, sempre muito bem acompanhado, uma pessoa finíssima, educada, elegante, com uma história de vida interessante. Era formado em turismo na USP, administração na PUC, mas à noite dava aulas de inglês e de dia trabalhava como cartorário da Infância e da Juventude, sendo que neste último caso, alegava o rapaz, era para fazer algo em prol do “social”. Já nas horas vagas, não me pergunte como, China ainda arrumava tempo para ser o baterista de duas bandas de garagem. Uma que ele levava como projeto comercial, a outra por prazer de tocar com os amigos.
Tempos depois, um amigo meu de colégio, hoje jornalista e músico, veio me contar a bomba: Chininha, aquele cara gente boníssima com quem eu ia almoçar no vegetariano da rua Riachuelo, sim, era ele mesmo o baterista da banda do Birigui. Simplesmente não pude acreditar. Um era culto, discreto e polido. O outro? Um escachado que não parava de rir das asneiras que ele próprio não parava de falar. Sabe aquele eterno adolescente skatista acometido da síndrome de Peter Pan? A primeira vez que comentei com Chininha sobre o fato de conhecer Birigui, não tive coragem de expressar todo o meu estranhamento sobre o fato de duas figuras tão diferentes fazerem parte do mesmo coletivo musical.
Algum tempo depois, o mesmo amigo jornalista veio me dar nova bomba: Sabe a banda dos caras? Sim, claro. Pois é. Um produtor musical da pesada pegou pra lançar. Anota aí. Nesse verão, várias rádios de São Paulo vão começar a tocar o som da banda e eles vão se dar bem. Profeticamente (ou talvez não), foi exatamente o que aconteceu. Dali a um tempo, eu ia sintonizar a Eldorado FM no carro, e de repente passava por alguma rádio do tipo mix FM ou 89.1 que estava lá, prestigiando os batuques do Chininha e a voz rouca do Birigui. Num período bem curto, a banda estourou nas paradas de sucesso, tornando-se uma das pioneiras no gênero “emocore”. Birigui, Chininha e companhia arrastavam multidões teens para os estádios, que se descabelavam cantando junto os hits da banda. Bastava eu me encontrar novamente com o amigo jornalista para ouvir as boas novas incrédulas. Diversão garantida. Agora o Birigui tinha um fã-clube com milhares de garotas espalhadas pelo Brasil. Mas o auge mesmo da banda foi no dia da festa de 40 anos da rede Globo. Diante duma platéia em que Tarcísio Meira e Glória Menezes eram os menos conhecidos, quem subiu no palco para cantar? Birigui! Foi surreal vê-lo interpretar Legião Urbana, e ao final, despedir-se gritando no microfone: - Valeu Rede Globo! Eu me divertia com a cena, lembrando daquele ex-sogro, o dono de gravadora que sempre se recusou a dar uma chance ao menino...
Já com a fama da banda estabelecida, de vez em quando eu ainda cruzava o Chininha batendo o cartão no relógio velho do Fórum: - E aí meu? O que você tá fazendo aqui? - Pô, sabe como é, eu gosto do cartório, aqui eu me sinto servindo a sociedade... Lógico que às alturas China faltava bem mais do que ia ao serviço, e não levou muito tempo para se despedir de vez do funcionalismo. Pelo que ouvi de inúmeras fontes (pode ser só fofoca infundada) Chininha era o cérebro da banda, a liderança natural dentro e fora dos palcos. Diziam ser ele quem compunha a maioria das canções, cujas temáticas oscilavam entre a desilusão amorosa e o destino fatal da humanidade. Era também o cara das relações públicas, quem sempre arrumava alguma paciência para atender jornalistas ou dar atenção aos fãs. Sabia da importância dessas coisas para a longevidade da banda. Por ser também um cara estiloso e carismático por natureza, todo ano no MTV Awards Brasil ele era eleito pelo público da emissora como o baterista na categoria “Banda Ideal”. Imagino que isso devia gerar uma certa angústia em Birigui, pois o mesmo nunca se dava com ele, que era o vocalista da banda, o cara do front, ao passo que o outro era só o baterista, quem fica na parte mais escondida do palco.
A fase fértil durou bem mais do que eu imaginei logo no começo. Foram quase 10 anos de viabilidade comercial. Nesse período, ao que soube (pode ser só fofoca infundada), Chininha guardou toda a grana, enquanto a maioria da banda torrou tudo em baladas pelas turnês. Recentemente, a última investida do mestiço no mundo das artes foi o lançamento de um livro reunindo as crônicas que ele costumava publicar numa revista feminina para adolescentes. O título da obra: “O que os garotos pensam sobre as meninas, na visão de um rock-star”. Li na internet que as vendas foram muito bem e a editora já estava lhe cobrando um segundo livro. Indagado sobre as razões para o êxito literário, China respondeu que formulava os conselhos para as meninas, mas antes de publicá-los ponderava se os daria também para uma irmã mais nova, caso tivesse. É ou não um gentleman?
Já Birigui – pasmem - parou de beber, casou-se e agora tem planos de se tornar pai. Fui saber disso não pelo amigo jornalista, desta vez pela minha mãe mesmo, que fez o buffet da festa de casamento e ouviu essas pérolas da boca do próprio. Eis aí um evento que lamento não ter sido convidado para testemunhar ao vivo e em cores. O casamento religioso do Birigui. Apesar de nossos universos digamos, um pouco distantes, sempre achei Birigui um cara do bem, no mínimo autêntico. A última vez que nos vimos foi no Mercearia São Pedro, ainda na fase áurea da banda. Ele foi super simpático comigo e com minha filha.
Moral da história nº 1: Birigui é a prova de que sim, TUDO é possível, basta acreditar intensamente, os livros de auto-ajuda estavam certos.
Moral da história nº 2: Se é Deus mesmo quem vem contando as atuais 7 bilhões de histórias do mundo, além de todas as passadas, convenhamos então - haja criatividade!

segunda-feira, 27 de junho de 2011

RATICÍDIO

Entre as principais desvantagens da casa sobre apartamento, as mais lembradas costumam ser a questão da segurança e o alto custo da manutenção. Particularmente, discordo de serem essas as principais. Nada, absolutamente nada pode ser pior do que estar ao nível do solo, próximo das bocas de lobo e de seus imundos habitantes. Se houve um momento inglório no processo de criação da natureza, foi quando se decidiu introduzir os ratos na cadeia alimentar. Tal ficha começou a me cair há exatos dois meses atrás, quando levei a primogênita para adquirir um novo bichinho de estimação na Cobase, e ela decidiu pelo hamster. Felizmente pra mim, infelizmente pra ela, a brincadeira durou apenas um final de semana. Tempo mais que suficiente para eu já formasse a seguinte crítica: com ou sem rabicó, nada mais asqueroso que os ratos. Devido, porém, a uma forte crise de sensibilidade da menina logo após o óbito, que na pausa do choro, desabafava: agora eu sei o que é perder uma pessoa querida... Decidimos tentar novamente. Um casal de roedores sírios que, ainda mais tragicamente, não durou sequer o final de semana. Na manhã seguinte lá estavam os dois, duros, desencarnados e afundados no feno da gaiola. Outra choradeira, agora seguida de um discurso mais ríspido: vamos pedir o dinheiro de volta, não está certo fazer isso com as crianças..

Um mês se passou desde a segunda fatalidade e a cidade de São Paulo se encarregou de acabar com o problema da minha filha e criar outro grande (problema) para mim. Quando você acorda de manhã, desce para tomar café da manhã e se depara com um rastro de cocozinhos no balcão da cozinha, seguido de uma goiaba e duas mangas completamente roídas na cesta de frutas; inicialmente, a vontade que se tem é de chorar. Mas aí vem os calafrios pelo corpo, e o sentimento de nojo se une ao senso policialesco: onde o canalha estará escondido? Será que já foi ao meu quarto? Na noite do mesmo dia graduei-me PhD no assunto. Descobri que em São Paulo habitam três espécies de roedores: as terríveis ratazanas, os ratos de telhado e os camundongos domésticos. Esse último é o único que tem a pachorra de esbulhar o interior de nossas residências para, na maior cara de pau, compartilhar de nossas despensas. Vivem pouco, mas enquanto respiram, não perdem tempo. Praticam sexo compulsivamente, gostam de doces, castanhas e vida mansa. Como todo ser inclinado ao carpe diem, é também impulsivo, extremamente curioso, o que facilita um pouco a vida daqueles que querem vê-lo morto. E se a internet é rica em informações científicas sobre o bicho e seus hábitos; já em relação às técnicas de extermínio, a melhor fonte ainda é o velho e bom “boca a boca”. Desde a aparição do bicho, ouvi milhares de histórias sobre o melhor jeito de matar ratos. Todo mundo que mora ou já morou em casa (não em apartamento) viveu alguma experiência parecida, e taí o tipo de história que as pessoas adoram contar. Algumas são hilárias, outras interessantes, em todas, porém, não conseguia me ver como seu protagonista. Sinceramente? Não é papo de pseudo-vegetariano simpatizante do budismo. Vai contra minha natureza retirar a vida de animais, em especial a daqueles que por tradição resistem a que isso aconteça. Quando soube ainda que os ratos fazem caretas intimidadoras, ou pior, contra-atacam o executor... Desisti. Não era um roedor pequenino o que você queria, Maricota? O instinto raticida só foi retomado cinco dias depois, quando convidamos um casal de amigos. para um churrasco argentino. Os dois são super legais, mas vivem numa realidade um pouco diferentes da nossa. Ele é milionário, e ela também, é super bacana, mas enfim, a mulher do milionário. Como sempre o casal foi super elegante nos trazendo um vinho de Borgonha, daqueles que não sai a menos de R$200. Então, quando parei de servir o bife de chorizo regado a chimichurri, já sentado na mesa da sala tendo como primeiro ângulo de visão os dois convidados, ao fundo a escada dos quartos, eis que vejo o mickey descendo os degraus no maior pinote, com aquela barriga nojenta sacolejando pra cima e pra baixo, esforçando-se para não derrapar no piso de cimento queimado. Pus a mão na cabeça e gritei:

- Filha da..

- Que foi? - o casal, de costas para escada.

- A cadeira, esta cadeira está um perigo.

Ufa, virou em direção à área de serviço, fugindo da sala. Depois, já no final da visita, outro momento de pura tensão. A minha cadela cometeu a deselegância de entrar junto com a mulher do milionário no lavabo. Falei pronto. Agora só falta o mickey estar lá de pé, fuçando o lixinho. Não estava, mas o trauma ficou no ar. Lá pelas quatro da madrugada, sonhei que vários ratos invadiam a casa pelos vãos do portão da garagem. Acordei tendo a certeza absoluta de que um deles andava sobre meu pescoço, o que me levou a gritar desesperado:

- Ahhhhh – O quê? – Tem um em cima de mim, subiu em cima de mim. - Que rato o quê! - a cônjuge, depois de acordar assustada. Levamos um tempo para reduzir as batidas cardíacas e voltar a dormir.

Como disse, depois do episódio tive que encarar o problema de frente e dar um jeito de me livrar do canalha. Diante de tantas opções assassinas, decidi encampar o estratagema da moça que trabalha para a minha irmã. Trata-se de técnica elaborada, que ainda por cima exige um certo sangue frio do executor. Como o local preferido dos camundongos é a traseira do fogão, ou dentro dele (local quentinho), se você ligar o forno, obviamente o calor passa da conta e o bicho é impelido a partir para outros cantos. Então, antes de esquentar o forno, você já fecha todas as portas da cozinha, pega um pano grande - e o mais importante - já vai colocando uma panela para ferver água. Quando o rato sair do esconderijo, você não perde tempo: arremessa o pano em cima dele, pega a panela de água fervida e faz o mesmo: arremessa no bicho preso pelo pano. Uma vez que ele ficará desnorteado, mas não chegará exatamente a falecer; deve-se pisoteá-la para garantir a consumação do ato. A principal vantagem da técnica reside na morte, que literalmente sairá por baixo do pano. Sim, o cadáver poderá ser removido sem sequer ser visto. O único impasse é a parte da pisoteada. Pensando bem, eu seria incapaz de fazer isso. Nem com a botina de petroleiro que o pessoal da refinaria me deu. Cogitei então do uso de chumbinho. Para quem desconhece, um veneno letal proibido depois que algumas mulheres traídas, muito criativas, começaram a lhe dar outros usos como misturar na jantinha dos maridos. Achar o veneno no mercado negro nem é o problema. A desgraça é que o chumbinho não causa morte instantânea e o bicho procura um lugar mais intimista, preferencialmente de difícil acesso, para aí sim dar o último suspiro. Dizem então que exalará um cheiro ruim durante dias, em alguns casos sem que nada se possa fazer para evitar. Resolvi apelar então para a tradicional ratoeira, que é mais ou menos como usar preservativo para prevenir gravidez. Em tese funciona, embora inúmeras variáveis possam frustrar o seu objetivo. De toda sorte, com a decisão tomada, espalhei pela cozinha três guilhotinas em formato miniatura, e apreensivo, subi para o meu aposento. Na cama rolando, não pensava noutra coisa a não ser no som do estalo vindo da sala, anunciando o timing exato da execução. Talvez porque meu sono seja sempre pesado, só não naquela noite, ouvi o barulho, não da ratoeira, um vindo da janela virada para o fundo da casa. Iiiic, iiic, iiiic... Pronto, pensei: é o mickey. Que diabos estará fazendo? Passando um rádio aos comparsas? Seguinte galera, cheguem mais porque hoje tem até queijo brie no chão da sala... O problema da falta de discrição é que às vezes ela pode ser fatal. Ao invés de atrair somente os seus pares, no quintal do vizinho, a gata ouriçou os pêlos e se espreitou em cima do muro. O felino desceu matreiro pelo tronco da pitangueira, escondendo-se na forração de dinheirinho, que depois das chuvas ficou bem alta. De repente, após minutos de silenciosa tensão, enfim o bote. Um barulho horrível seguiu-se a uma enorme correria pelo jardim. Durou pouco, mas foi impressionante. Esganiçados infinitamente mais agressivos do que aqueles que os gatos emitem na relação sexual. Não sei dizer se o raticídio se consumou. Sei que desde então os rastros do bicho sumiram. Sem mais cocozinhos ao redor do fogão e da pia, os queijos da ratoeira ficaram para as formigas. Inclusive, na manhã pós caçada, descobri que embaixo da pia da cozinha, ao lado do sifão, havia um monte de jornal picotado que mais parecia uma cama do menino Jesus no presépio. Isso mesmo. O bicho tinha planos de constituir família ao lado das panelas. Felizmente, passara-se um mês e esses planos também não foram mais retomados. Felizmente, é só na ficção que o Jerry se dá melhor que o Tom.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MAURO E TARSILA

Conheceram-se no inglês. A primeira vez que a moça o ouviu falar alguma coisa foi nessa língua. Não era um adolescente propriamente bonito, mas achou graça em sua pronúncia, no olhar difuso de quem está e não está. Havia, enfim, toda uma presença de espírito no rapazinho que desde o princípio chamara a sua atenção. Já Tarsila era a pérola com a qual todos os garotos sonhavam cortejar. Assediada pelo mestre de capoeira do bairro, e no entanto o desprezou. Recebeu poemas e declarações apaixonadas de Túlio, que tinha helicóptero particular e casa nas Laranjeiras, mas também por ele nunca se interessou. Certa vez, a professora de inglês propôs um exercício em duplas e escolheu ao acaso os dois para trabalharem juntos. As bochechas do rapaz coraram imediatamente, e foi aí que ela descobriu: nada pode ser mais atraente do que um homem tímido por sua causa. Assim que a aula acabou, Mauro até tentou prolongar o assunto, ir além dos phrasal verbs, mas as mãos suavam, e as falas, ensaiadas, atropelavam-se antes mesmo de deixarem os pensamentos. Para a aula seguinte, resolveu tomar uma decisão. Redigiu uma carta na língua de Shakespeare, recheada de clichês e metáforas sentimentais. No intervalo da aula, após muito sofrimento, reuniu coragem e enfiou o papelote dobrado no bolso externo da mochila de Tarsila. No minuto seguinte pegou-o de volta, renunciando por completo à ideia, convicto de que um homem de verdade não carece das letras para se esconder. Na aula seguinte ela não foi. Escarlatina. Foi reaparecer só na outra semana, na hora do intervalo, de mãos dadas com um sujeito mais velho, um tipo excêntrico, cheio de brincos no nariz e uma camiseta com o rosto do trapalhão Mussum, escrita “Ô do Jabá!”. Mauro soube depois que se tratava de um músico, baixista duma banda de rock progressivo, famoso no bairro quando, em sua festa de aniversário, distribuiu uma jarra de suco de lichia com docinhos sintéticos misturados ao gelo. Vê-la com outro fê-lo sentir-se a pessoa mais insignificante do mundo. O garoto chegou a pedir aos pais para o tirarem do inglês, sob a alegação de que o método de ensino da escola era ruim e não favorecia o aprendizado. A mãe atendeu à solicitação do filho, sensibilizada por não ser de seu feitio pedir para deixar de estudar alguma coisa.
Transcorreram-se seis anos para que o acaso pusesse Mauro e Tarisla em contato novamente. Foi no parque, numa tarde nublada, ela fazendo cooper com o dálmata; ele sozinho, também correndo, de cabelo curtinho, corpanzil atlético, quase irreconhecível. Ela sem namorado, ele começando a engatar uma história com uma garota da mesma academia. Ao se deparar novamente com Tarsila assim, tão inusitadamente, passado tanto tempo, curioso que a tenha cumprimentado com tamanha naturalidade, como se fosse ontem a última vez, como se fossem muito mais íntimos do que de fato eram. Papearam à beça, e em pouco tempo descobriram inúmeros gostos em comum. Mauro descobriu ainda que o tempo só lapidara aquilo que já era bom em Tarsila. Marcaram encontro para a mesma noite num pub irlandês perto da Paulista, ocasião em que a garota contou sobre as aulas que dava aulas de flamenco, e ele, bem brevemente, mencionou estar no último ano do ITA, com planos de seguir a carreira de astronauta. Encontraram-se várias vezes depois disso. Adoravam passar madrugadas assistindo comédias italianas do tipo pastelão, às vezes se viam só para conversar, dividir alguma angústia, ela bem mais do que ele, mas em qualquer circunstância a presença de um sempre confortava a do outro. Para ele, nada no mundo era mais belo do que vê-la dançar e tocar castanholas ao som de Camarón de La Isla ou Paco de Lucia. No entanto, por alguma incógnita razão, nunca se permitiam um vínculo maior, que de fato os alçasse à condição de compromissados. Ficavam meses seguidos sem se ver, e de repente, ela ligava pra ele, viam-se no minuto seguinte e passavam juntos o resto da semana, curtindo aquela intensidade que não se perdia com o tempo. A noite anterior à ida de Tarsila para Madrid foi a última vez que se viram. Não transaram. Abraçaram-se muito e choraram, como se já pressentissem ser aquela a última vez. Tarsila estabeleceu-se na Espanha, sagrando-se excelente dançarina. Nunca se casou. Viveu com três homens e morreu ao lado do último, num acidente de carro banal. Mauro se casou com uma colega de trabalho, com quem teve um casal de gêmeos. Há um mês atrás ele recebeu convite para assumir a diretoria de uma multinacional francesa que fabrica aviões, mas preferiu ficar na Embraer, perto da família. Nunca soube da morte de Tarsila. Dela, guarda apenas memórias de uma grande amizade, e a cartinha em inglês, que nunca teve coragem de revelar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

BREVE ENSAIO SOBRE A PICUINHA

A piscina do clube é bacana, costuma dizer. Pena que ultimamente ela esteja indo tão pouco, graças à sua dermatite atópica crônica, doença que não se bica com o cloro. A asma da pele faz com que a menina ferva por dentro, mais ou menos como se alguém jogasse pimenta malagueta na pele, fazendo alastrar enormes feridas que não param de coçar. Mas como à ocasião daquela tarde de verão ela também já não estava mais acordando com o lençol manchado de sangue, o pai colocou na balança e viu mais prós do que contras numa ida esporádica à piscina. Valorizando o evento, prometi-lhe a compra de novos óculos de natação, de repente um rosa choque de sua princesa favorita.
Pouco antes, porém, de chegar ao vestiário da piscina, lembrei que o exame médico da menina estava vencido. Pior: a fila da renovação estava enorme. Pior que o pior: um dos maiores contribuintes para a dermatite é a absoluta impaciência de seu portador. Depois fomos saber, a fila estava enorme porque a médica deu cambalacho no ofício, e em seu lugar escalaram uma auxiliar de enfermagem de idade avançada, já com as ideias meio atrapalhadas. Então, bem mais que uma mera dificuldade de garimpar fungos, a senhorinha não tinha a menor intimidade com o computador que validava as carteirinhas. Durante os aproximados quinze minutos que eu e a Maricota ficamos na fila, discutimos bravamente. Ela dizendo que não aguentava mais esperar, eu dizendo para ir se acostumando, pois a vida é cheia de esperas. Quando chegou nossa vez, confesso que já estava quase desistindo do programa.
- Por favor. Abra os pés. Isso. Agora abre bem os dedos. Vira de costas.
Foi aí que notou. A batata da perna da menina estava tomada de manchas róseas, algumas revestidas de cascas esbranquiçadas.
- Micose? – a senhorinha pra mim.
- Não. Dermatite atópica. Uma doença genética, sem o menor risco de contágio.
- Mas... Você tem um laudo médico?
- Sim.
- Posso ver?
- Ficou em casa.
- Mas eu preciso ver.
- Ok. Amanhã eu te trago.
- Não! Precisa ser antes.
- Dona... Já disse que amanhã sem falta eu trago original e cópia autenticada, se você quiser.
- Não me leve a mal, mas infelizmente, sem o laudo não posso liberar.
- Peraí.. A senhora não é médica? Não tá vendo que isso aqui é dermatite?
Sem perceber, cutuquei na ferida, não da minha filha, da examinadora. Óbvio que ela não era médica.
- Não te interessa se eu sou médica ou não! Interessa que o clube precisa de um laudo atestando a doença da menina, e sem isso eu não posso liberar..
Cansado de argumentar com a síndrome do pequeno poder, decidi mudar o foco.
- É o seguinte. Essa aqui é Maria Júlia. Ela tem cinco anos de idade e mora num apartamento quente, apertado, quase insalubre. Hoje, Maricota acordou sonhando com os jatos de água da ilhota da piscina grande e com os toboáguas da pequena. Então, gostaria agora que a senhora dissesse diretamente a ela se poderá ou não nadar hoje.
Saí da sala, mas procurei um ângulo estratégico, bem na entrada da porta, de onde pudesse ver a cara das duas.
- Infelizmente, só com o laudo.
Entrei de novo espumando de raiva e puxei a menina pelo braço sem conseguir olhar na cara da mulher. Saímos dali e sentamos no primeiro banco que encontramos. Olhei pro lado, vi a bichinha com as costas arcadas, braçinhos dobrados apoiados sobre as coxas, as mãos segurando o queixo e um certo esforço no semblante dela para não chorar. Fiz uma força hercúlea para segurar o impulso passional de armar o barraco para ao invés disso, buscar uma solução mais racional, que efetivamente resolvesse o problema. Até que bingo. Bateu o lampejo. Fomos juntos na direção da catraca da piscina, e diante da fiscal de plantão, sorri do jeito mais simpático que pude:
- Oi, tudo bem como você? Viu, a carteirinha dela ficou com a mãe. Pode passar por baixo?
Vupt. Passou. Claro. Normas são feitas por adultos, para adultos. Uma vez lá dentro, valorizamos muito mais ainda o toboágua e a ilhota com jatos d’água. Depois de brincarmos, já exaustos, descansando ao sol que batia na beira da piscina olímpica, aproveitei para explicar à menina as nuances morais que diferenciam a vingança da picuinha.
- Então minha filha, agora que você já entendeu, quero que volte lá, entre na sala da mulher, e balançando os cachos molhadinhos, diga à mulher quão deliciosa a piscina estava.